quarta-feira, 27 de junho de 2012

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Ustra x Anistia: Lei mal escrita hoje é dor de cabeça amanhã



Coronel é condenado a indenizar família de vítima da ditadura

O coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra foi condenado em primeira instância a indenizar a família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971 em decorrência de torturas do regime militar (1964-1985).
Ele terá que pagar R$ 50 mil, por danos morais, para a ex-companheira de Merlino, Angela Mendes de Almeida, e o mesmo valor para a irmã dele, Regina Merlino Dias de Almeida. Cabe recurso.
É a primeira vez que a Justiça manda um agente da ditadura pagar reparação financeira a familiares de uma vítima de tortura. Em casos semelhantes, a responsabilidade recaiu sobre o Estado.
A decisão condenando o militar foi proferida anteontem pela juíza Claudia de Lima Menge, da 20ª Vara Cível de São Paulo (...) 
Paulo Alves Esteves, advogado do militar, informou que recorrerá da decisão. Ele afirmou que os atos que levaram à condenação foram ‘apagados" pela Lei da Anistia’
Durante a causa, a defesa protocolou reclamação no Supremo Tribunal Federal alegando que a ação da família de Merlino viola decisão do STF que, em 2010, manteve regras da Lei da Anistia.
O ministro Carlos Ayres Britto negou o pedido de Ustra em outubro de 2011.
O entendimento foi de que a anistia extinguiu a possibilidade de uma condenação penal, mas não a responsabilidade civil e o eventual pagamento de indenização

Essa é uma decisão interessante porque mostra como uma lei mal feita hoje gera problemas sérios amanhã. Vamos concentrar em dois problemas da Lei de Anistia citada na matéria acima:

Diz o artigo 1o da lei que “é concedida anistia a todos quantos (...) cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos  (...)

O primeiro problema é que não sabemos o que é um crime político. Algumas leis brasileiras (como a que define o genocídio) até dizem o que eles não são (por exemplo, genocídio jamais é crime político), mas nenhuma diz o que eles são. Logo, a lei concede anistia, mas não diz anistia a quê. Fica a cargo dos magistrados e juristas debaterem a respeito. E esse debate, como não tem a força de uma lei, acaba gerando incertezas.

Há duas principais correntes a respeito: a primeira diz que crimes políticos são aqueles cometidos contra alvos políticos; e a segunda diz que são crimes cometidos com motivações políticas. Óbvio que quando alguém com motivações políticas comete um crime contra um alvo político, é um crime político e fica pouca dúvida. Mas o problema é quando eles não se sobrepõem.

Se um psicopata que calha de estar em um determinado cargo da polícia mata o prisioneiro político, o homicídio cometido pelo psicopata é político ou crime comum? Afinal o ‘alvo’ (o prisioneiro com atividades políticas) é político, mas sua motivação para matá-lo não tem nada a ver com política, mas apenas sua incapacidade de controlar sua psicopatia.  Pela primeira teoria, houve crime político. Pela segunda, não.

O segundo problema é que a lei diz que concede anistia aos que cometeram crimes políticos, eleitorais etc. Mas ela não diz anistia a quê. Em outras palavras, ainda que resolvamos o primeiro problema e consigamos definir quem pode ser anistiado, não está claro o que pode ser anistiado.

Para entender esse ponto precisamos ter duas coisas em mente:

Primeiro, quando alguém é vítima de um crime, ele tem direito a reparação civil pelo dano sofrido. O Estado pune o criminoso (direito penal), mas a vítima é ressarcida pelo criminoso (direito civil). O ressarcimento não é uma punição, mas uma reparação do dano sofrido. É disso que a matéria acima está tratando.

Segundo, anistia é um termo normalmente associado a assuntos criminais, mas não é restrita a eles. Há, por exemplo, anistia em direito administrativo (anistia de quem construiu sem alvará da prefeitura), tributário (anistia de quem deixou de pagar determinado tributo), eleitoral (anistia dos candidatos que receberam multas eleitorais), e militar (anistia de quem deixou de se alistar ou apresentar para o serviço militar obrigatório).

Mas há anistia em direito civil? O caso da matéria acima (reparação de dano material ou moral) é civil. Ao contrário de todos os exemplos acima, que são em relações de direito público (pessoas x Estado), as relações civis são de direito privado, isto é, entre duas pessoas (ainda que uma delas seja o Estado ou seu agente). Uma anistia em direito público  significa que o Estado está se prejudicando, mas uma anistia em direito privado significa que o Estado está prejudicando uma pessoa. É possível a lei dizer que o direito privado que existia entre duas pessoas já não existe mais?

É óbvio que a Lei de Anistia está dizendo que o Estado não poderá mais punir criminalmente. Mas ela está também dando anistia à obrigação de reparar civilmente o dano sofrido? Ninguém sabe ao certo porque a lei não foi clara. A decisão da matéria acima foi que não, ou seja, que é possível pedir reparação civil contra o torturador. Mas, como a própria matéria explica, essa é a primeira vez que um magistrado interpreta a lei dessa forma.

PS: Para ver um exemplo simples do quão mal escrita foi a Lei de Anistia, repare que no §2º a mesma lei diz que “excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Três dos quatro ‘crimes’ – terrorismo, assalto e atentado pessoal – não existem para a lei brasileira.

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